Nova Geração da MPB? parte II

Na primeira parte desse negócio (como eu deveria chamar o conjunto?), dei alguns pitacos sobre a chamada “nova geração da MPB”. Levantei a questão de se isso realmente existia, ou, melhor dizendo, se temos algum motivo para colocar toda essa gente em uma caixinha e etiquetar com esse nome. A maioria dos comentários que fiz foram meio negativos, mas deixei os positivos para esta parte II.

Quero começar, contudo (como já tinha adiantado) respondendo a esse artigo do André Forastieri, ídolo do nosso ídolo Norberto Reeves. No artigo, Forastieri chama a nova geração da MPB de MIB – Música Impopular Brasileira -, e disso ele passa a reclamar que a nova geração não dialoga (e nem tenta dialogar) com o grande público, como se essa ausência de sucesso de massa fosse determinante para o sentido da coisa.

Mas por que deveríamos esperar esse sucesso? O Juliano já cantou a pedra nos comentários do meu primeiro post: o termo “música popular” é usado em oposição a “música erudita”; nunca teve conotação de sucesso de massa; de modo que a conversa toda é desperdício de teclado. Daria, contudo, para prescindir dos termos ao defender a importância do sucesso, de modo que bola pra frente…

Formulemos a pergunta assim: uma pretensa nova geração, pra cumprir essa vocação, precisa ter sucesso massivo, extra-subcultura? Pode ser que precisasse, até pouco tempo atrás, quando a mídia de massa significava que os movimentos, fossem populares ou alternativos, eram vistos por todo o mundo ao mesmo tempo, no rádio ou na televisão, e que portanto para formar uma ‘geração’ o sujeito precisava disso.

Acontece que a moral dessa nova geração é justamente a transição da mídia de massa para a mídia social. Se isso significa alguma coisa de relevante e emocionante é precisamente que não tem mais que todo o mundo gostar das mesmas coisas, que podem haver inúmeras camadas, ‘gerações’ sobrepostas acontecendo ao mesmo tempo, e que nenhuma delas precisa ter sucesso de massa.

O próprio Forastieri começa seu artigo baseado em uma reportagem que acusa precisamente esse fato: enquanto os camelôs seguem vendendo sucessos massivos – sobreviventes para quem ainda forma seu gosto pela cultura de massa – o mercado atingido pela ‘nova geração’ é reduzido mas efetivo: uma galerinha restrita que conheceu a parada pela internet compra na loja de CDs.

Afinal que mal tem nisso? Como disse o Lenine, cujas opiniões curto pra caramba (acho que no Roda Viva): acabou a era dos milhões para poucos, começou a era dos milhares para muitos. No meu livro isso é ótimo. Significa que ao invés de uns poucos artistas milionários teremos muita gente vivendo de arte, e que teremos muito mais música boa para escolher e consumir livremente, sem ninguém decidir isso por nós.

Forastieri, portanto, critica a partir do paradigma ultrapassado. Além do mais, não adianta vir com o velho papo de que a panelinha intelectual não pode determinar, na contramão das massas, o que é bom. Pode sim, e sempre foi assim. Aquilo que hoje é tido como o melhor da história da música sempre esteve em uma segunda linha do pop, atrás de porcarias – porcarias estas das quais hoje nem lembramos.

De modo que esse tipo de crítica joga a favor da nova geração: se existe algo de relevante a respeito dessa gente é justamente que eles não fazem grande sucesso e, ainda assim, atingem alguém. Como disse o Regis Tadeu, a nova música brasileira não vai aparecer na tua cara nas mídias de massa. Isso não significa, contudo, que não é boa, como o próprio Regis procura demonstrar na sua série de posts.

Infelizmente, quase nada dessa lista do Regis me convenceu a baixar discos – imagina se eu tivesse que ir à loja! Quase tudo é bonzinho, mas nada dá a vertígem. Nada parece capaz de mudar a minha forma de ver as coisas, que é o que música popular realmente boa deveria fazer. Essa mediocridade geral talvez seja também parte desse espírito gerado pela pluralidade? Espero que não, né?

Claro que existem algumas coisas realmente boas por aí (até um relógio parado está certo duas vezes ao dia). Exemplos que vêm a mente são o Apanhador Só – som altamente criativo e aventuresco -, o Lucas Santtana, apresentado a mim pelo Vini e pelo APJ, e mesmo a banda desses dois, a Canastra, que tem feito movimentos estéticos indicativos das pulgas na cueca necessárias pra fazer algo relevante.

Mas de modo geral, é difícil comprar a ideia de que temos uma nova geração fazendo algo de relevante. Pode ser que eles expressem muito bem o momento, mas isso basta? Nos falta talvez algo além disso; algo que nos leve além do momento presente, que o coloque em questão. Difícil imaginar o que seria isso a priori (se eu imaginasse não estaria aqui escrevendo bobagem, e sim no estúdio do Lauro Maia gravando um disco), mas talvez o lembrete valha contra a acomodação.

A importância dos Hermanos

Esse fim de semana rolaram os dois shows portoalegrenses da turnê de reencontro do Los Hermanos. Meus amigos todos foram, menos eu. Mas, como sou grande fã da banda, e como sei que o pessoal agora vai estar sedento por qualquer coisa Los Hermanos por umas duas semanas (acontece depois de shows bons – e me disseram que esse foi bom), resolvi escrever algo sobre a banda.

Dá pra dizer que Los Hermanos é a maior banda do rock moderno brasileiro? Bom, que tem gente que pensa isso, tem; e os ingressos para o primeiro show em Porto esgotaram no primeiro dia. Ao mesmo tempo, parece que todas as pessoas que não idolatram os Hermanos odeiam a banda. Não conheço ninguém que conheça Los Hermanos e que ache a banda legal: todo o mundo ou idolatra os caras ou os odeia.

Qual será a explicação disso? Meu palpite é o seguinte: o culto aos Hermanos se tornou tão sinônimo de intelectualidade que a banda adquiriu uma legião de fãs babacas (o fenômeno é bem representado no já classico texto Como Me Fudi no Show do Loser Manos). O resultado foi que muita gente pegou nojo da banda por causa dos fãs (embora até o texto citado admita que a banda é boa).

Como eu realmente gosto da banda (e não me considero um babaca) acabei virando o cara que sempre tenta convencer o pessoal a dar uma chance aos Hermanos. Em geral acho que é isso o que eu vou fazer nesse artigo: tentar mostrar o que a respeito dessa banda fez ela tão importante para mim e de modo geral. Quem sabe quem não gosta ainda da banda pode dar uma chance, e quem gosta pode curtir/se identificar.

Os Hermanos começaram ainda nos anos noventa, com um som que bebia do forrocore dos Raimundos, mas substituía a putaria/nordestinidade das letras por um romantismo brega meio jovem guarda. O primeiro CD inteiro são variações sobre esse tema: divertidíssimo, mas nada de mais também. Destaque para Anna Júlia, sim. Se essa não é uma ótima música pop, explica para o George Harrison o que é uma.

Mas assim como o Pablo Honey ainda não era Radiohead, foi a partir do Bloco do Eu Sozinho que Los Hermanos viraram Los Hermanos. Esse disco mudou a visão de muita gente do que era música e rock – e, quando o cara é novo, isso significa muito. Não é à toa que digo isso. Já ouvi de amigos meus, e não foram um nem dois. Mas o que exatamente a respeito desse disco era tão novo?

Bom, arrisco dizer que antes do Bloco do Eu Sozinho ninguém tinha misturado rock alternativo com música brasileira de uma forma que fizesse sentido. Geraçoes anteriores do b-rock sempre soaram (pelo menos para mim) a arremedos toscos do rock internacional. Pode ser que o tipo de rock moderno/indie que os Hermanos faziam fosse mais fácil de misturar com samba. Será? Não sei mesmo.

O Bloco do Eu Sozinho saiu no mesmo ano do Is This It? dos Strokes. Foi quando o Indie Rock veio para o centro do rock (e o termo perdeu de vez o sentido original). Se tinha alguma coisa no Brasil em sintonia com isso, era o Los Hermanos – e eles não perdiam em originalidade para os contemporâneos gringos. Muito pelo contrário: tinham o trunfo da música brasileira na manga. Se Rodrigo Amarante, com a sua voz de bêbado, era o Julian Casablancas tupiniquim, Marcelo Camelo era o Chico Buarque indie.

Infelizmente, eu ainda não estava ligado nessa época, e acabei só conhecendo os Hermanos com o disco Ventura. Vi eles na turnê desse disco, no teatro Guarany, e fiquei vidrado nas dancinhas do Amarante – que eu já tinha visto na MTv, no clipe de Cara Estranho. E como foram marcantes o clipe kafkiano e a letra dessa música para o adolescente atrapalhado que eu era na época.

Os Hermanos me deram as ferramentas para gostar de Chico Buarque – que até então era, para mim, coisa dos meus pais – e daí para o resto do samba e da música brasileira em geral foi um pulo. Sem dúvida não sou o único a poder dizer isso, e ter puxado uma geração para esse lado é mérito (ou culpa?) da banda. Eles próprios, ao mesmo tempo, foram se aproximando cada vez mais da música brasileira.

Para mim, o quarto e último disco dos Hermanos não é mais que o amadurecimento natural do que veio antes. Não entendo por que boa parte dos fãs que conheço não gosta desse disco. Suponho que sintam falta do rock, porque esse disco é mais MPB do que qualquer dos outros, mais lento e mais introspectivo. Ainda assim, para mim, só O Vento e Condicional já valem um disco de rock.

Depois disso veio o chamado hiato – e como é bom quando as bandas fazem hiato ao invés da alternativa que é fazer música de merda. Na carreira solo, o Camelo se realizou como compositor e o Amarante, com a banda Little Joy, se realizou como Julian Casablancas. Nesse meio tempo, como acontece com todas as bandas consagradas que fazem hiato, o Los Hermanos foi se transformando em lenda.

Geralmente, quando uma banda boa volta só para fazer turnê, isso é uma coisa decadente e infeliz. Vale pra muitas bandas que eu gosto. Ainda assim, por algum motivo, a volta dos Hermanos não me ofende em nada. Para mim parece fazer perfeito sentido, embora eu não saiba bem explicá-lo. Acho que as músicas e a banda ainda são, por assim dizer, pertinentes. Até me dói não ter ido no show.

Uma boa explicação para a pertinência dos Hermanos é que boa parte do que existe hoje no rock nacional deve muito a eles. Não conheço uma banda sequer que misture rock com música brasileira depois do LH sem usar em alguma medida a fórmula deles. Cícero no Rio, Apanhador Só em Porto Alegre, e até a extinta Revel do meu comparsa Juliano Guerra são exemplos óbvios de herdeiros dos Hermanos.

Além do mais, não é nem bem verdade que essa turnê seja só uma reunião para tocar músicas antigas. Soube hoje que tocaram pelo menos uma música nova (créditos do vídeo à Duda) – pelo que consegui entender da letra, a primeira música politicamente engajada do LH: novidade. Não pesquisei para saber se isso aponta disco novo no horizonte. Espero que sim, porque nada indica que a fonte tenha secado.

Nova Geração da MPB? parte I

Já tinha pensado em escrever alguma coisa sobre a “nova geração da MPB” e a “nova geração do rap brasileiro”, mas acabou deixando de ser novidade antes de eu me manifestar. Agora, com a aparição das tais fotos, o assunto voltou a ser discutido e resolvi dar os pitacos que vinha juntando.

Nas mencionadas tais fotos, artistas da chamada “nova geração” aparecem reconstituindo fotos de artistas clássicos da MPB. Criolo aparece como Cartola, Mallu Magalhães como Rita Lee e, na foto que talvez seja a mais representativa, toda uma trupe reconstitui a capa do disco Tropicália ou Panis et Circencis (de Caetano, Gil, Tom Zé, Mutantes et al.), marco do movimento tropicalista dos anos 60.

A mensagem parece ser: temos uma nova geração e ela está fazendo hoje algo comparável ao que foi feito por figuras como Cartola, Caetano Veloso ou Mutantes no passado. Mas será comparável mesmo? E em que sentido? E o que caracteriza a final essa nova geração para que a chamemos de uma geração?

Geralmente, quando se começa a juntar um punhado de artistas e chamar de uma geração, de um movimento ou uma cena, a botar um nome na coisa, o motivo é antes de mais nada vender o pacote ao invés dos produtos individuais. Assim como Nirvana e Soundgarden não têm muito a ver além de ter vindo de Seattle, essa galera toda não parece ter muito a ver além de ter vindo… da internet?

De fato, se o critério fosse o parentesco musical, não faria muito sentido colocar a Mallu Magalhães na lista e excluir o Marcelo Camelo: o disco atual dela é extremamente camelístico, tanto nas composições quanto na produção, e dá pra supor que tenham vários dedos dele ali (ou muita influência). Mallu chega a cantar coisas como “ai moreno” – dá pra ficar mais Camelo que isso?

Parece, portanto, que o que junta essa nova geração é mesmo os meios pelos quais eles se comunicam com o público, independentemente de grandes gravadoras e da grande mídia, e tendo a internet como meio de difusão.

Claro, não é só isso – o Alércio e o Vini da Canastra Suja foram uns que me falaram sobre haver realmente um diálogo entre o som de uma galera que está por aí. Não deixo de acreditar. Mas, como em tudo que envolve lógica de mercado, não dá para ser inocente – pelo menos não quando a gente quer ver a si mesmo como alguém interessado em música como arte, coisa e tal.

A questão portanto é saber se a pretensão midiática de que existe uma nova geração, de que ela tem uma identidade e de que ela é artisticamente relevante tem algum fundamento além do interesse da própria mídia. Pode ter ou não, e como a mídia tem interesse em que tudo isso seja verdade (dá o que falar, e ter o que falar é o ganha-pão desse pessoal), o fato da mídia estar dizendo isso não é argumento.

Cabe lembrar também que uma das grandes características do nosso tempo é a facebookização da opinião: opinião se tornou um artigo de estética pessoal, e a coisa mais fácil é adquirir e usar uma opinião pronta simplesmente porque ela melhora a imagem do sujeito frente a um determinado grupo. Ninguém precisa concordar, entender ou sequer ler para compartilhar de uma opinião: basta clickar share e pronto.

O que tem isso a ver? O seguinte: se parece existir uma nova geração da MPB e parece legal gostar dela, isso é suficiente pra uma galera já estar gostando, compartilhando no facebook, discutindo no Gato Gordo Café. Além do mais, não é nada difícil de gostar dessas paradas: Velha e Louca, por exemplo, consegue a façanha de ser um feel good hit do Marcelo Camelo – minha mãe adora. Outro bom exemplo é o disco do Criolo: muito fácil de gostar e muito fácil de parecer legal gostando.


O disco do Criolo tem uma música em cada estilo exótico do mundo – até rap tem. Cada uma bonitinha, bem-feitinha e desinteressante: “falta a essas faixas algo mais do que a boa vontade do rapper em conferir diversidade a seu trabalho“. A coisa mais fácil é neguinho (e principalmente branquinho) gostar disso sem entender nada, só porque fica legal mesmo. Outro bom exemplo é a letra do hit Subirusdoistiozin – cheia de expressões que eu duvido muito que o fã branco de classe média do Criolo entenda.

O sucesso da “nova geração do rap”, representada aqui por Criolo e Emicida, entre a população branca de classe média é um negócio que eu não entendo direito. Parece que o pessoal gosta por uma mistura de idolatria por aquilo que não se compreende (a exemplo do mencionado acima) e culpa burguesa. Como se gostar de música sobre favelado fosse eximir o cara de toda uma história de exclusão.

Baixei um disco do Emicida. Tem 18 faixas e quase 1 hora de duração. Todas as músicas falam sobre vencer na vida através do rap, apesar da inveja dos outros que estão mandando contra. Não entendo como alguém pode se identificar com isso sem ser o próprio Emicida; nem mesmo alguém que tenha a mesma orígem dele, muito menos um estudante de artes ou design gráfico.

Mas não é que eu ache que não dá pra gostar de rap sendo branco e tendo estudado em colégio particular. Eu sempre achei legal Racionais e Facção Central, por exemplo, mas é uma admiração distante, quase antropológica. Eu sei que não tenho as ferramentas para entender do que eles estão falando. Mas aí vem o fulano dizer que o rap tem algo de muito real. Como tu sequer sabes que é real, cara-pálida? Como diz o próprio Criolo em Sucrilhos: “Cientista social, Casas Bahia e tragédia / gostam de favelado mais que Nutella” – adicione-se à lista o nosso universitário hipster.

Bom, isso aqui já está ficando grande demais e eu tenho que preparar um seminário que está me dando trabalho, então acho melhor continuar depois. A ideia era parar de falar mal das coisas e responder ao post do ídolo do Snows sobre a questão da “nova geração” não atingir grandes públicos, mas vai ficar para uma parte dois. Até lá quero saber de opiniões: “a nova geração” existe? tem identidade? é relevante?

Continua…

Rimbaud: a Missão

Primeira coisa, Juliano, quero dizer que concordo plenamente sobre a Canastra Suja. Me parece que eles entraram nessa de música popular com espírito aventureiro (nas palavras da Apanhador Só, por quem acho que foram influenciados nisso); nessa, se quiserem, cozinha do desespero; e que desde então não têm muita certeza do que estão fazendo – isso no bom sentido, é claro.

Uma velha canção, sendo desafiada

Mas estou para te dizer que não sei se pegaste bem a ideia do Pécora. Não acho que ele esteja falando contra a vertigem – tanto é que é nele mesmo que te baseias para fazer a apologia da corda-bamba. Ele está falando, bem sabes, justamente contra a acomodação e – eis a grande sacada – percebendo na loucura, na maldição, também uma possível (vê bem que só possível) forma de acomodação a ser superada.

Nietzsche descreve assim essa parada da loucura: “é a loucura que abre alas para a nova ideia, que quebra o encanto de um uso e uma superstição venerados. Compreendem por que tinha que ser a loucura? […] Algo que ostentasse tão visivelmente o signo da completa involuntariedade como os tremores e a baba de um epilético, que parecesse distinguir o louco como máscara e porta-voz da divindade?”.

Mas eis o importante: “todos os homens superiores […] não tiveram alternativa, caso não fossem realmente loucos, senão tornar-se ou fazer-se de loucos”. Inclusive, me parece que o próprio bigodudo, querendo ou não, se beneficiou do charme de ele próprio ter enlouquecido. Recentemente vi um documentário que romantizava justamente esse fato, como se fosse por causa do peso do pensamento que o carinha tinha virado pinel (na verdade era sífilis).

Então faz algum sentido esse uso da loucura como engodo, como uma espécie de prestidigitação para capturar os incautos. Eu nem sou contra: certamente eu não teria sido tão impressionado pelo Eddie Vedder se ele não se fizesse de louquinho, pelo Thom Yorke se ele dançasse como quem tem convulsões, pelo Ian Curtis se ele de fato não tivesse convulsões. Mas concordo que tem que haver algo mais que isso, que a própria loucurinha não pode servir de justificação única para o artista.

Thom Yorke incorporando

Mas então a loucura e a maldição podem ser pejorativas, como pode o romantismo (esse ou outros): tudo isso serve de justificativa fácil para a arte. Já tem inclusive quem faça arte boa ironizando a romantização dos malditos (olha o meta-meta); mas, adivinhem!, a ironia – como a referência cultural gratuita, sua parente – já são também formas de justificação. Ser descrente e estar de ressaca, é claro, também é.

Claro que temos aí um problemão. Se podemos expandir esse raciocínio e entender todas as novas formas de justificação da arte, e descartá-las, parece que o Pécora não tinha como não ter razão em dizer que não há horizonte visível no negócio. Mas isso não cheira muito bem: parece que se a nossa forma de raciocínio anula qualquer futuro possível, talvez nosso raciocínio esteja errado.

Essa é uma questão interessantíssima pra quem liga pra cultura. Exemplo: o Snows reclama direto da reciclagem cultural e decorrente ausência de coisas novas, mas ao meu ver acaba errando ao usar o critério cronológico de novidade. Citando de novo o Pécora, a novidade cronológica é uma categoria comercial, categoria artística é a novidade propriamente artística – mas se esta virou auto-anulatória, comofas?

Eu ia resolver essa questão (a saber, a do sentido da arte na contemporaneidade) ainda nesse post, mas de repente não estou mais a fim. De resto, reitero que não tenho nada contra o Juliano viver em dúvida se quer ser Rimbaud, Noel ou Bob Dylan. Isso só puxa para mais perto de alguma coisa que valha a pena. Agora, a grande diferença está entre quem quer parecer Rimbaud e quem quer ser Rimbaud. Embora querer ser esteja longe de ser o suficiente, quem quer ser pelo menos está no bom caminho.

Gosto não se discute?

No início da semana passada, prometi este post ao meu comparsa Roberto Soares Neves, o Snows, com quem costumo praticar amadoramente o grande esporte da opinião temerária. Ele vinha defendendo que a idolatria de certos grupos por artistas como Chico Buarque de Hollanda e Bob Dylan se devia unicamente (se entendi bem) a um complô destinado a aumentar as suas vendas. O tema central desse post, contudo, é outro, que pode ser resumido na questão: gosto se discute?

Isso porque um dos meus mais recorrentes argumentos, quando o Roberto afirmava que o Dylan, embora não fosse ruim, não era genial, era dizer que isso se devia antes de mais nada ao fato de que o Roberto não tinha as ferramentas necessárias para entender o que havia de legal a respeito daquele judeu fanho, e portanto não podia realmente gostar do som dele.

Mas atenção: não estou tentando dizer que todo o mundo que entende o som do Dylan necessariamente gosta: alguém pode entender e achar uma grande porcaria, e ter boas razões para isso. O ponto é só que, quando o Roberto diz que as canções de quatro acordes do Dylan nunca vão ser tão marcantes quanto o riff de Smoke on the Water, o que ele está fazendo é avaliar o som do Dylan segundo parâmetros com os quais não faz o menor sentido avaliá-lo, e isso demonstra muito mais o despreparo do avaliador do que qualquer coisa a respeito da qualidade da obra.

Não se trata, portanto, de um absolutismo de gosto, mas justamente um relativismo: não estou dizendo que Dylan é necessariamente melhor do que outras coisas, mas sim que só se pode gostar de alguma coisa segundo certos critérios que precisam, de certo modo, ser aprendidos. O legal a respeito disso (e o que me levou a ter vontade de escrever esse post) é que esse relativismo não significa uma inexistência total de critérios: ele depende desses critérios contextuais.

É que a ideia de que “gosto não se discute” sempre me incomodou. Para mim a única explicação para as mudanças de gosto pelas quais passamos durante a vida é que existem padrões de gosto que desenvolvemos durante ela. Eu quero crer que, se o tempo me levou a deixar de gostar disso para gostar disso, disso e disso, isso não é um mero acaso. Se essas mudanças fossem flutuações aleatórias, nada nos impediria de acordar um belo dia gostando muito de Limp Bizkit. Viveríamos com medo.

Mas aí alguém pode me acusar, como fez o Robertinho, de estar sendo sim um absolutista ao dizer que a evolução do gosto necessariamente levará para uma determinada direção (i.e. começando nos sucessos da Atlântida e em direção ao Festival de Montreux e, é claro, ao Bob Dylan). Mas não é isso que estou dizendo: embora hajam direções mais ou menos comuns, os gostos podem se desenvolver para diferentes lados. Um exemplo são músicos profissionais que, a partir de um certo ponto, começam a admirar uma música pop bem feita (ou bem produzida, montada), que provavelmente seria considerada por eles próprios, em tempos passados, uma bosta de música.

Para mim o que parece acontecer é mais ou menos o seguinte: é como se tivéssemos papilas gustativas com as quais apreciamos qualquer tipo de arte e, para desenvolvê-las, precisamos nos expor gradualmente a certos tipos de expressão, precisamos de contexto, de uma predisposição a certas atitudes, etc. É por isso que para a maioria da população do Brasil 99% do que eu escuto poderia ser classificado como “barulheira” ou “música deprê”, e que toda uma geração começou a gostar de MPB quando escutou o Bloco do Eu Sozinho. Precisamos trilhar certos caminhos para aprender a gostar das coisas e, embora isso não nos faça superiores, às vezes pode valer a pena: é sempre bom ter em mente que podemos estar perdendo alguma coisa.

A Caretice Reina

Na minha ingenuidade, eu cresci pensando que o Brasil era realmente um pais de liberalidade, de pessoas despreocupadas e com jogo de cintura. Eminentemente velho como eu era quando novo, tinha tudo isso inclusive por ruim – para mim malandragem era injustiça: era uma forma que os infames e os preguiçosos tinham de sair por cima, nas costas de gente séria e dedicada como eu pensava ser.

À medida que os anos foram passando e que – com orgulho, como o Dylan – fui me tornando uma pessoa mais jovem, fui me dando conta de duas coisas: por um lado, do valor desse jogo de cintura que antes eu desprezava; por outro, de um fato até então oculto mas na verdade muito evidente: o Brasil há muito tempo não tem nada a ver com nada disso – e digo mais: é hoje um dos maiores antros de caretice do mundo.

Dylan sobre tornar-se jovem (do documentário “No Direction Home”)

Mas como? Mas como se há tanta propaganda da nossa alma liberal, e se os nossos principais produtos nacionais são a bunda e a corrupção? Além do mais, com a quantidade de gente mal-comida – versões inchadas de mim aos meus oito anos – que circula reclamando da nossa malandragem, não havemos de ser malandros? Não pode ser que tudo isso seja uma ilusão, pode?

Acontece, meus caros, que tudo isso tem explicação. Esse tal espírito brasileiro, existindo ou não, vende – e estamos carecas de saber que, hoje em dia, não se pode esperar por explicação melhor para um fato da vida do que um simples “isso vende”. Quanto aos chatos que reclamam da liberalidade excessiva: são chatos – não têm nada com o que se ocupar e portanto reclamarão de qualquer coisa, seja ela verdadeira ou não.

Mas e quanto às bundas, à corrupção, à sonegação? Não são formas claras de no mínimo uma malemolência moral? Estou pra te dizer que não: numa análise um pouco mais detida da questão, a conclusão se impõe: qualquer dessas atividades é perfeitamente capaz de ser praticada sem o menor pingo de jogo de cintura, pelo menos no sentido que me interessa e sobre o qual estou falando aqui.

Esse fenômeno pode ser observado nas situações mais corriqueiras. Um exemplo é a pose de malandro que os rapazes fazem nas fotos, fazendo sinais com as mãos no estilo rapper americano. Conheço pessoas que fazem isso para qualquer foto. Se posar como uma pessoa descolada é tão impositivo (posar fazendo um certinho nesse contexto se torna uma atitude quase punk) conclui-se que o paradoxo da seguinte frase não é senão aparente: ser descolado pode sim ser careta.

Chico já tinha cantado a pedra em 1978: aquela tal malandragem não existe mais – e o malandro com contrato, com gravata e capital não é o mesmo malandro que Chico exaltava porque tinha – estou concordando – a sua beleza. Essa malandragem de passar por cima dos outros virou, me parece, também quase uma obrigação: é tão importante não sair perdendo que o pessoal está passando-para-trás quase por pudor.

Ainda digo mais, ainda que sem explicar: suspeito que a caretice seja a raiz de muitos dos nossos grandes problemas contemporâneos. Mas se o sistema é careta, há de haver uma revolução não-careta, certo? Errado, mais uma vez: as pessoas mais caretas que eu conheço são justamente os revolucionários, com as suas ideologias rígidas e essa tendência incontida de proibir certas palavras – pura covardia.

Por que para mim, além de burrice, é falta de culhão proibir, por exemplo, expressões como “negro”, como se a palavra carregasse algum juízo moral. Muito mais coragem seria usar essa palavra – que é inclusive muito bonita – a torto e a direito, imprimir a ela o significado positivo que merece por cima do negativo. Mas não: a solução dos supostos liberais é proibir covardemente. Nietzsche cospe em vocês sob o bigode.

Reconheço, contudo, que o uso que estou fazendo aqui das expressões jogo de cintura e especialmente malandragem não é exatamente o sentido comum e isso pode levar a alguma inconsistência. Na verdade, o que estou procurando é uma palavra que indique o exato oposto de caretice ou de bunda-molice em geral. Isso tem a ver com pensamento livre, com senso de humor e com aquela tão esquecida regra de ouro segundo a qual não se deve legislar (jurídica ou moralmente) senão quando for estritamente necessário. Se as palavras que temos para isso estão todas viciadas, inventemos palavras novas ou – melhor ainda – reabilitemos as antigas.